domingo, 27 de dezembro de 2020

O Bebê de Rosemary (1968) – O Papel da Mulher

 



Recentemente assisti novamente O Bebê de Rosemary, acho interessante assistir esses clássicos de tempos em tempos. Mais interessante ainda é perceber que algumas histórias de um modo geral nunca deixam de ser curiosas, atrativas, mas também passar a ser um marcador histórico de como a sociedade está estruturada.

Em resumo o filme se trata de uma mulher que engravida do capiroto, sem consentimento, mas no fim opta por cuidar do bebê. E esse é ponto principal que gostaria de tratar: papel da mulher, consentimento e escolhas.

1.    Mesmo em 1968, época na qual se passa o filme, eu tenho certeza que seita encontraria uma mulher que aceitasse ser mãe do filho do diabo, bastaria procurar, talvez nem fosse necessário procurar muito, a questão é que se preferiu dar essa opção ao marido e não para a pessoa que engravidaria. Mesmo quando foi optado por uma mulher em situação vulnerável, não foi lhe dito do que se tratava e, portanto, ela não teve direito a escolha. Percebe-se que socialmente a vontade da mulher não é respeitada, não se cogita tratar do assunto claramente e deixar que a mulher tome suas decisões.

2.     Quanto a estratégia para que a Rosemary engravide do sete peles é colocada em prática, ela é dopada, ou seja, estamos falamos de estupro. Apesar de haver um planejamento para que haja sexo entre o casal, com o fato dela ser drogada, perde a possibilidade de consentimento, então, mesmo que o ato tivesse sido entre o casal, ainda assim seria considerado estupro. Quando se trata de estupro marital, a mulher ainda não tem voz nos dias de hoje, mas, o decorrer da cena na manhã seguinte me choca pela naturalidade, que expressa como essa situação simplesmente faz parte do cotidiano, como se nada demais tivesse acontecido. Ocorre que a Rosemary acorda na manhã seguinte, percebe que está machucada, questiona o marido sobre o ocorrido e ele menciona que transaram porque não queria perder “a noite do bebê”, ressalta que ela estava desmaiada e que foi divertido, meio necrófilo. Fiquei sem reação, para ele estava tudo certo, e ela, mesmo se sentindo incomodada, mencionando que sonhou estar sendo estuprada, que poderiam ter esperado até ela estar sóbria, também seguiu como se tudo bem, isso acontece, não houve uma discussão mais profunda. Quando se trata de sexo com o marido, há uma aceitação de que tudo é permitido, que o corpo da mulher está disponível mesmo não estando consciente. Não sei dizer se o choque maior se deu por perceber que essa situação aconteceria da mesma forma atualmente ou se porque a naturalidade da cena não se tratou de um apelo narrativo para que o expectador se questionasse, mas sim porque realmente é assim, a mulher não tem voz, e decisões importantes lhes são roubadas.

No fim, para mim o mais assustador nesse filme de terror não foi ela ter um filho do mochila de criança, mas sim, nada disso ter sido sua escolha. Uma obra é um espelho da sociedade e a sociedade que vejo hoje é pouco melhor para as mulheres do que era em 1968, apesar de anos de luta, ainda estamos muito longe de uma sociedade de igual respeito para todos onde a mulher possa fazer as suas escolhas.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A VIAGEM

Depois de muito tempo sem nenhuma inspiração a saudade me fez refletir e gerou em mim um sentimento grandioso de admiração que quero compartilhar





Refletia eu sobre a viagem dos meus filhos, de com sinto falta deles, dos momentos memoráveis antes da viagem e de como o fato de perceber felicidade na voz deles e das pessoas que os estão cuidando me dá força para ser mãe e seguir o que devo fazer: AMAR INCONDICIONALMENTE, LHES DAR A CERTEZA DE QUE TEM UM LUGAR SEGURO PARA VOLTAR, ENSINAR A SEREM CRÍTICOS E DECIDIREM POR SI E, o pior de todos SABER QUE OS CRIO PARA O MUNDO, PARA SEREM FELIZES NO MUNDO, NÃO NA BARRA DA MINHA SAIA.
Reflexão feita, esperança fortalecida quando um pensamento avassalador assumiu minha mente: COMO MÃES CUJOS FILHOS “VIAJARAM” AO MUNDO ESPIRITUAL SE FORTALECEM? Como mães que perderam seus filhos de forma definitiva nessa encarnação conseguem continuar?? Não consegui uma única reflexão que me fortaleceria. Esse fato me levou para outro pensamento: uma mulher que consegue continuar vivendo, seguir em frente após perder um filho, e sei que o seguir em frente é de um modo doloroso com uma ferida aberta sem jamais esquecer, merece meu respeito, minha consideração e minha reverência.
Lembrei de algumas mães e gostaria em especial citar:
D. Judith
Maria Elena
Pamela.
À vocês e às outras mães que foram privadas da convivência dos filhos quero dizer que são para mim exemplos de força e superação, porque nada pode ser mais doloroso do que o que vocês sentem.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

As Coisas que Vi, Que via Pela Televisão




   Faroeste Caboclo



Faroeste Caboclo é a inspiração para esse texto, calma, podem ficar tranquilos, não seria abusada o suficiente para escrever sobre a música toda, mas apenas um pedaço em especial que toda vez que ouço, independente da situação me remete a minha trajetória da infância até aqui, até hoje.

Ele queria sair para ver o mar
E as coisas que ele via na televisão
Juntou dinheiro para poder viajar
De escolha própria, escolheu a solidão

A primeira coisa que tenho lembrança de querer ver e que via frequentemente pela televisão é o Instituto Butantã. Lembro da vez que juntei toda minha coragem de criança e após ver uma reportagem sobre as serpentes perguntei ao meu pai se algum dia ele me levaria lá. A resposta foi um não bem sonoro acompanhado de “isso fica em São Paulo”. Neste instante sem fazer ideia de que isso aconteceu, meu pai plantou a semente do meu sonho em morar em São Paulo. Desde então quando via uma reportagem sobre alguma exposição de algum artista eu sentia um calor estranho em meu coração, uma que tenho especial lembrança de querer ter visto foi a exposição O Fantástico Corpo Humano. Essa tive a oportunidade de ver e deixei passar, mas na próxima....


Lembro de querer ver a praia, bem essa eu vi antes de mudar de cidade. Mas continuo querendo ver faz parte dos meus planos para o verão.
Por muitas vezes pensei que era injustiça uma pessoa que é completamente apaixonada por cinema nascer numa vila que fica próxima de uma cidade que não tinha cinema. Mas como lamentar não resolve nada, eu sonhava, sonhava com cinema, exposição, vida própria, sem manipulação, independência.
A primeira oportunidade surgiu aos 17/18 anos quando conheci um amor pela internet da Grande São Paulo. Por pura submissão ou destino, ou sei lá deixei a oportunidade partir, passei a viver uma vida conformada, pelo menos externamente, na cidade, não mais na vila. Tinha dado um passo.
Já conseguia ir ao cinema, ver o lago, comer cachorro quente, mas isso ainda não era o Instituto Butantã.
Eu acredito fielmente na lei do retorno e que as forças universais conspiram atraindo o que mais deseja. E, em um momento da minha vida onde já havia uma certa independência psicológica surgiu um amor pela internet que morava na Grande São Paulo. Um não, incrivelmente o mesmo!
Sem sobras de dúvidas que essa oportunidade eu não perderia por nada, jamais deixaria passar a chance de viver um amor e de graça ver tudo o que gostaria!
Mas naquele momento as cosias não eram mais tão fáceis quanto há anos. Havia dependentes, casa, emprego, primeiras necessidades. Mas para tudo há planejamento e para o que não se pode planejar é possível contar com a Lei do Retorno.
Então, depois da mudança já vi em seis meses mais do que em 27 anos:



PRAIA DE GUARATUBA (essa faz anos)


INSTITUTO BUTANTà



CENTRO DE SÃO PAULO


 MUSEU DA CIÊNCIA - CATAVENTO



FACHADA DO CATAVENTO

 


A CANOA  SOBRE O EPTE - MONET


 SAN GENNARO DECOLATTO O SANT'AGAPITO - CARAVAGGIO


MEDUSA - CARAVAGGIO
 



BANCO DE PEDRA NO ASILO SAINT REMY - VICENT VAN GOGH


CONGESTIONAMENTO RÉGIS BITTENCOURT, PRÓXIMO AO MEU TRABALHO
 



SHOPPING EL DORADO


CINEMA 3D (O MAIS PRÓXIMO DA CIDADE EM QUE MORAVA ERA A 500KM)

sábado, 13 de outubro de 2012

Creuza, Mulher de Filomeno Fimino







Seu Firmino acabara de sair batendo a porta atrás de si. Creusa ficara inconformada com a falta de sensibilidade dele de perceber que ela precisava de um pouco de companhia.
Era toda a noite a mesma coisa, bem toda noite não, mas as que não ia ao bar jogar friperama ficava em casa no sofá peidando, pulando o canal da TV e reclamando do trabalho pesado para sustentar a casa a e mania de limpeza dela.
Se pelo menos ele, depois de encher o cú de cachaça com aqueles vagabundos que chama de amigos, chegasse em casa carinhoso. Ou se antes de sair desse um beijo sem gosto de pinga. Ou se pelo menos em um dos dias que fica em casa ao invés de peidar no sofá ficasse ao seu lado assistindo a novela.
De qualquer forma ela não sabe ao certo quando aconteceu, mas hoje em dia tanto a sua presença quanto sua ausência a sufocava. Imagina se algum dia existiria para ela o “felizes para sempre” como sempre havia na novela que ela assistia.
Há algum tempo, quando ele ganhou uma pequena bolada na tele-sena, isso mesmo, aquela do Silvio Santos (e sim, as pessoas ganham de verdade nisso), as coisas pareciam estar boas novamente. Fazia compras fartas em supermercados. Os vizinhos até comentavam os beijos barulhentos que ele e sua mulher davam em publico.
Mas como ele nunca ouvia seus conselhos sobre como investir o dinheiro ganho, acabou perdendo tudo em pouco tempo, e aí se entregou à cachaça e ao friperama. Parecia ser a única alegria que tinha.
Houve um período que ele até tinha comprado discos do Roberto e do Amado Batista e ouviam juntos, depois, quando o dinheiro se foi, os discos foram as primeiras coisas que ele se desfez.
Ela amargurada, não prestava atenção na filha de 15 anos que já tinha dado pra todos os homens do bairro. Nem que o menino de 19 anos andava meio alucinado com olhos vermelhos. Talvez preferisse ignorar e continuar assistindo novela na sua casa impecavelmente limpa.
As vezes parava para pensar, muito raramente, quando teria algum gosto na vida, porque tinha se dedicado em cozinhar, limpar, passar, cuidar do marido, dos filhos, e tinha esquecido de si. Percebia agora que como muitas famílias a sua era desestruturada e cada um tinha ido buscar em prazeres efêmeros e egoístas o consolo e ela tinha sobrado, sozinha, amargurada, incompreendida, com uma porta batida na cara, enquanto pedia para Firmino trocar a resistência do chuveiro.
Iria dormir sem tomar banho como protesto ao estado que sua alma estava.

sábado, 29 de setembro de 2012

3 Fichas



Esse texto é de autoria de Deivs Mello, mas me inspirou a escrever do ponto de vista da esposa de Filomeno Firmino, seu nome é Creusa... Boa leitura e espero que fiquem curiosos para ver o outro lado da moeda!





Seu Filomeno Firmino acabara de sair de casa sob reclamações de sua esposa tola. Para ele, ela era incapaz de perceber a nobreza e a firmeza de Firmino.  Ela passara a vida toda tentando manter a sua vida limpa, uma metáfora para o modo de como ela mantém os seus poucos móveis e seu imóvel alugado impecavelmente limpo. Pobre esposa ela é, pois ao contrário das novelas que ela tanto gosta, no final as coisas não acabam em casamento, mas em separações e lamentos.


As reclamações eram as de sempre.

1º Aporrinhação

   "È toda noite a mesma coisa,  vai pro bar com aqueles vagabundos encher o rabo de cachaça e jogar aquela porra de friperama."
Acontece que não é todo dia, os jogos são marcados nas terças, quintas, sextas e sábados.
 E é com uma reza  pelo o amor de Deus que ele sempre pede para que ela nunca confunda "friperama" com SINUCA.

   Os seus amigos não são vagabundos, são todos trabalhadores como ele. Destruídos pelo cinismo e frustração conjugal,  depenados pela rotina do cotidiano entediante.

    Há algum tempo atrás quando  seu Filomeno ganhou uma pequena bolada na tele-sena, isso mesmo, aquela do Silvio Santos (e sim, as pessoas ganham de verdade nisso), as coisas pareciam estar boas novamente. Ele havia comprado uma Variant 75 cor pérola. Fazia compras fartas em supermercados. Os vizinhos até comentavam os beijos barulhentos que ele e sua mulher davam em publico.

   Pois foi nesta fase da vida que ele viciou-se em sinuca. Jogava todo dia com seus amigos, porém para sua esposa ele ainda não era um vagabundo cachaceiro.

    Enfim, era uma alegria só, no entanto como todo pobre que nunca viu muito dinheiro na vida ele acabou exagerando nos gastos e esqueceu de investir. Na verdade ele não sabia  investir, ele sabia... Encaçapar.

2º Aporrinhação

   A filha adolescente de 15 anos  que já tinha dado para os homens do bairro todo. Ouvia isso dos cochichos no bar em que frequentava, mas ele já não estava mais ai pra isso.

   Em sua casa Filomeno era o habitual marido inútil. Conseguia consertar uma porta quebrada, algum vazamento,  lâmpadas queimada, videocassetes que engoliam fitas, etc. Mas era incapaz de consertar a beleza, a alegria e o amor outrora tão vívida naquela família.  O cotidiano já tinha se encarregado de encaçapar todos os ingredientes necessários para a difícil relação humana  a longo prazo.

   Filomeno não tinha mais pressa de consertar algo que para ele já não fazia mais sentido.

   Quando o dinheiro se foi, deixando os problemas, Filomeno sofreu, chegou até a vender sua preciosa coleção de vinil do Robertão e do Amado Batista para conseguir uns trocados para jogar sinuca, pois naquela mesa esmeralda ele havia encontrado um novo talento, um novo sentido para a vida.

3º Aporrinhação

   Pode até parecer um clichê, mas a vida dessas pessoas é feita disso mesmo, de muitos clichês de mau gosto.
   Enquanto no bar o limão e a cachaça desciam rasgando pela garganta de seu Filomeno como se fossem Yamahas  YZF-R6 tirando rachas nas BRs, o pó conseguia o mesmo efeito em seu filho de 19 anos que o cheirava em um mocó qualquer.

   Talvez a questão não fosse como Filomeno criou a sua família, mas como cada um individualmente buscou para si o melhor jeito de amenizar tamanha desilusão familiar, tão em voga nos dias de hoje. Cada um buscando em prazeres efêmeros e egoístas a melhor maneira de esconder o fracasso perante uma sociedade que cobra de forma hipócrita diariamente de cada um de nós a vitória quase nunca alcançada.

    Filomeno consagrou-se no dia de hoje campeão de sinuca do seu bairro.

   Para seu Filomeno esta vitória na verdade acaba se tornando vazia dentro desta vida banal, talvez até camuflada dentro das pequenas coisas que acontecem em nossa vida todo dia. O sorriso estampado na cara é um prazer sem alegria de um simples entregador de gás que agora recebia, não dinheiro, não uma nova família, não um novo carro, não uma nova vida, mas sim  um novo item para a sua esposa tirar o pó. Aquela vitória não o tornaria o pai do ano e nem um personagem especial de um programa do Esporte Espetacular.

   Nunca vamos saber o que significou aquela vitória para o seu Filomeno, por que nesse momento estamos concentrados demais atrás de nossas próprias  vitórias tão medíocres, porém tão especial para cada um de nós.

   A vitória de uma batalha na guerra contra o cotidiano na  maioria das vezes não trará nenhuma significância para os filhos, esposas e amigos.

   Amanhã seu Filomeno poderá entregar um botijão de gás em sua casa e lhe dar de brinde um imã de geladeira com uma simpatia  e sorriso raro, mas você não percebera isso, pois , estará ocupado demais planejando  sua própria vitória mesquinha e solitária.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Amélia








Amélia era jovem, bonita, durona, tinha um filho lindo, acabara de adquirir casa própria, tinha um marido que bancava todas as despesas da casa, passava o fim de semana com ela. Tudo parecia transcorrer normalmente. Parecia. Havia algo em seu coração que a perturbava e ela nunca exteriorizava. Não gostava de parecer sentimental ou fraca.
Buscou logo cedo no amor, ou na paixão, ou sei lá como se chama aquele sentimento que aflora no coração dos adolescentes a referência paterna que não teve. Seu pai e sua mãe eram separados e ele não compartilhava a guarda como Amélia precisaria. Nessa busca encontrou um namorado, seu primeiro amor, ele não era a melhor das referências que ela poderia ter, mas contentou-se com isso por enquanto. Os anos passaram e ela foi descobrindo o mundo. Sempre se mantendo o mais correta possível, com muito medo de perder a referência masculina, aos poucos foi descobrindo que não sendo essa a melhor opção talvez fosse melhor viver outra história como de carreira de sucesso, por exemplo; ao invés do viveram felizes para sempre dos contos. Em meio a esses pensamentos engravidou. O rol de opções para sua vida feliz foi desmoronando um a um e ela foi obrigada a se contentar em casar e tentar conciliar sua busca pessoal.
Mas continuar vivendo quando as escolhas foram mal feitas não é fácil para ninguém e não foi para Amélia. Em casa, jovem, mãe, fumante, segundo grau incompleto, com bebê e o que tudo isso implica, com medo de virar um tribufu; sua fuga, seu único vínculo com aquilo que gostaria de ser foi a anorexia. Parece estranho, mas era a única coisa unicamente dela naquele momento. Claro as implicações foram significativas: parou de amamentar muito cedo, a final café e cigarro e não produzem o melhor leite do mundo. Se olhava no espelho e via uma imagem disforme de uma mulher gorda e feia, na verdade via sua própria alma amargurada no espelho e não importa quanta dieta, a alma não ficaria bela. Em função da falta de alimentação adequada, do excesso de café e cigarro, da presença de um bebê não planejado que obrigatoriamente ela teria que amar, sofreu um surto psicótico. Ficou um dia todo andando alienada, como zumbi pela casa, sem comer, sem olhar para seu bebê, sem escutar os choros dela, sem alma. Seu marido, que até então tinha assumido apenas o papel de provedor, colocava a grana em casa, foda-se o resto, levou um susto quando chegou e viu o vazio nos olhos da esposa. Pela primeira vez ele viu que havia algo errado e como muitos se perguntou como não tinha percebido chegar a esse ponto. Provavelmente não percebeu porque vivia entorpecido pela bebida que era mais fiel que a esposa no final da tarde. Pela primeira vez tomou uma atitude, não esperou a vida levá-lo. Pegou a bebê, levou para sua mãe, pediu para ela cuidar naquele dia, mentiu que sua dedicada esposa e mãe iria fazer uma consulta qualquer e demoraria toda a tarde. Procurou seu irmão e mentor, colocou minimamente a situação e pediu ajuda.
Amélia cujo corpo vagava e a alma já não estava mais presente nesse mundo foi levada para casa de seu cunhado, ela sequer percebeu a ausência do seu bebê, que obrigatoriamente deveria amar. Ele tentou conversar com ela, mas foi impossível, porque carne conversa. Decidiram levá-la para casa, afastá-la da bebê e esperar um momento de lucidez.
A lucidez surgiu numa madrugada escura e silenciosa. Amélia que já fumava de maneira automática e inconsciente saiu do seu devaneio com olhar de susto. Foi com pavor que viu seus dedos indicador e anelar queimados pelos cigarros que ela acendeu sem estar nesse planeta. Procurou um espelho e viu o reflexo de uma caveira, atônita foi mais adiante e observou seus dentes danificados pelo fumo e cafeína, então olhou para seu corpo e o que viu a apavorou. Era agora uma mulher alta, com todos os ossos aparecendo sob a roupa, a costa levemente curvada para frente em claro sinal de fraqueza, o cabelo maltratado pela falta de cuidado. Pela primeira vez desde que perdeu sua vida para o descuido conseguiu ver sua real imagem externa que expressava na essência o desespero. Nesse momento decidiu que uma infância roubada, uma decisão errada, uma busca frustrada e um filho não planejado não lhe roubaria um futuro de sucesso. Sentiu se miserável pelos meses que foi relapsa com seu filho. Nesse exato instante ela começou o planejamento de como seria sua mudança.
Primeiro passo foi parar de fumar e abandonar o café. Como todo bom viciado ela optou por um vício um pouco menos agressivo, o chimarrão. O cigarro foi terrível de deixar, mas ela superou. Andava com uma carteira com um cigarro na bolsa para forçar o auto controle, sabia que enquanto fosse capaz de não fumar aquele cigarro estaria sendo mais forte que sua dependência. Próximo passou foi assumir a maternidade. O primeiro olhar como mãe para seu filho foi algo tão emocionante que ela derramou lágrimas descontroladas, ela que nunca chorava era mãe e se emocionava com o amor que brotava em seu coração. Não era o amor obrigatório. Era um amor incondicional que só as mães e alguns pais conseguem sentir. A próxima atitude foi voltar a estudar e procurar um emprego. Não foi fácil, começou como zeladora da empresa do cunhado, o valor que recebia dava apenas para pagar as despesas da faculdade que era pública. Amélia era dotada de uma Inteligência inacreditável, embora não soubesse na época. Sabia apenas da força de vontade que tinha de vencer. Levava seu filho uns três quilômetros de bicicleta, grande parte deles morro acima, pelo menos na volta era morro abaixo, na creche pública que conseguiu vaga.
Sem reclamar ela foi apenas conquistando um futuro que lhe foi negado na infância. Com sucesso se formou em quatro anos, logo ingressou em uma pós graduação, seu filho foi crescendo de maneira saudável e absorvendo que o sucesso é conquistado, merecido, não ganhado. Tornou-se uma criança e estudiosa, algo que a deixava orgulhosa. Conseguiu um emprego estável em um concurso, ingressou em outra pós, dessa vez federal, conseguiu financiar a casa própria. Então respirou fundo, olhou para sua vida e concluiu que tinha andado muito mais do que ela própria acreditava ser capaz de andar.
Evidente que o caminho é longo e a vida curta, o aprendizado estava longe de ser completo, ela ainda teria maus bocados pela frente e uma descoberta interessante. Mas isso é assunto para outra história. Porque o feliz para sempre não é a realidade para ninguém, o aprendizado e o crescimento sim é que fazem parte das histórias.