Amélia era jovem, bonita, durona,
tinha um filho lindo, acabara de adquirir casa própria, tinha um marido que
bancava todas as despesas da casa, passava o fim de semana com ela. Tudo
parecia transcorrer normalmente. Parecia. Havia algo em seu coração que a
perturbava e ela nunca exteriorizava. Não gostava de parecer sentimental ou
fraca.
Buscou logo cedo no amor, ou na
paixão, ou sei lá como se chama aquele sentimento que aflora no coração dos
adolescentes a referência paterna que não teve. Seu pai e sua mãe eram
separados e ele não compartilhava a guarda como Amélia precisaria. Nessa busca
encontrou um namorado, seu primeiro amor, ele não era a melhor das referências
que ela poderia ter, mas contentou-se com isso por enquanto. Os anos passaram e
ela foi descobrindo o mundo. Sempre se mantendo o mais correta possível, com
muito medo de perder a referência masculina, aos poucos foi descobrindo que não
sendo essa a melhor opção talvez fosse melhor viver outra história como de
carreira de sucesso, por exemplo; ao invés do viveram felizes para sempre dos
contos. Em meio a esses pensamentos engravidou. O rol de opções para sua vida
feliz foi desmoronando um a um e ela foi obrigada a se contentar em casar e
tentar conciliar sua busca pessoal.
Mas continuar vivendo quando as
escolhas foram mal feitas não é fácil para ninguém e não foi para Amélia. Em
casa, jovem, mãe, fumante, segundo grau incompleto, com bebê e o que tudo isso
implica, com medo de virar um tribufu; sua fuga, seu único vínculo com aquilo
que gostaria de ser foi a anorexia. Parece estranho, mas era a única coisa
unicamente dela naquele momento. Claro as implicações foram significativas:
parou de amamentar muito cedo, a final café e cigarro e não produzem o melhor
leite do mundo. Se olhava no espelho e via uma imagem disforme de uma mulher
gorda e feia, na verdade via sua própria alma amargurada no espelho e não
importa quanta dieta, a alma não ficaria bela. Em função da falta de
alimentação adequada, do excesso de café e cigarro, da presença de um bebê não
planejado que obrigatoriamente ela teria que amar, sofreu um surto psicótico. Ficou
um dia todo andando alienada, como zumbi pela casa, sem comer, sem olhar para
seu bebê, sem escutar os choros dela, sem alma. Seu marido, que até então tinha
assumido apenas o papel de provedor, colocava a grana em casa, foda-se o resto,
levou um susto quando chegou e viu o vazio nos olhos da esposa. Pela primeira
vez ele viu que havia algo errado e como muitos se perguntou como não tinha
percebido chegar a esse ponto. Provavelmente não percebeu porque vivia
entorpecido pela bebida que era mais fiel que a esposa no final da tarde. Pela
primeira vez tomou uma atitude, não esperou a vida levá-lo. Pegou a bebê, levou
para sua mãe, pediu para ela cuidar naquele dia, mentiu que sua dedicada esposa
e mãe iria fazer uma consulta qualquer e demoraria toda a tarde. Procurou seu
irmão e mentor, colocou minimamente a situação e pediu ajuda.
Amélia cujo corpo vagava e a alma
já não estava mais presente nesse mundo foi levada para casa de seu cunhado,
ela sequer percebeu a ausência do seu bebê, que obrigatoriamente deveria amar. Ele
tentou conversar com ela, mas foi impossível, porque carne conversa. Decidiram
levá-la para casa, afastá-la da bebê e esperar um momento de lucidez.
A lucidez surgiu numa madrugada
escura e silenciosa. Amélia que já fumava de maneira automática e inconsciente
saiu do seu devaneio com olhar de susto. Foi com pavor que viu seus dedos
indicador e anelar queimados pelos cigarros que ela acendeu sem estar nesse
planeta. Procurou um espelho e viu o reflexo de uma caveira, atônita foi mais
adiante e observou seus dentes danificados pelo fumo e cafeína, então olhou
para seu corpo e o que viu a apavorou. Era agora uma mulher alta, com todos os
ossos aparecendo sob a roupa, a costa levemente curvada para frente em claro
sinal de fraqueza, o cabelo maltratado pela falta de cuidado. Pela primeira vez
desde que perdeu sua vida para o descuido conseguiu ver sua real imagem externa
que expressava na essência o desespero. Nesse momento decidiu que uma infância
roubada, uma decisão errada, uma busca frustrada e um filho não planejado não
lhe roubaria um futuro de sucesso. Sentiu se miserável pelos meses que foi
relapsa com seu filho. Nesse exato instante ela começou o planejamento de como
seria sua mudança.
Primeiro passo foi parar de fumar
e abandonar o café. Como todo bom viciado ela optou por um vício um pouco menos
agressivo, o chimarrão. O cigarro foi terrível de deixar, mas ela superou.
Andava com uma carteira com um cigarro na bolsa para forçar o auto controle,
sabia que enquanto fosse capaz de não fumar aquele cigarro estaria sendo mais
forte que sua dependência. Próximo passou foi assumir a maternidade. O primeiro
olhar como mãe para seu filho foi algo tão emocionante que ela derramou
lágrimas descontroladas, ela que nunca chorava era mãe e se emocionava com o
amor que brotava em seu coração. Não era o amor obrigatório. Era um amor
incondicional que só as mães e alguns pais conseguem sentir. A próxima atitude
foi voltar a estudar e procurar um emprego. Não foi fácil, começou como
zeladora da empresa do cunhado, o valor que recebia dava apenas para pagar as
despesas da faculdade que era pública. Amélia era dotada de uma Inteligência
inacreditável, embora não soubesse na época. Sabia apenas da força de vontade
que tinha de vencer. Levava seu filho uns três quilômetros de
bicicleta, grande parte deles morro acima, pelo menos na volta era morro abaixo,
na creche pública que conseguiu vaga.
Sem reclamar ela foi apenas
conquistando um futuro que lhe foi negado na infância. Com sucesso se formou em
quatro anos, logo ingressou em uma pós graduação, seu filho foi crescendo de
maneira saudável e absorvendo que o sucesso é conquistado, merecido, não
ganhado. Tornou-se uma criança e estudiosa, algo que a deixava orgulhosa.
Conseguiu um emprego estável em um concurso, ingressou em outra pós, dessa vez
federal, conseguiu financiar a casa própria. Então respirou fundo, olhou para
sua vida e concluiu que tinha andado muito mais do que ela própria acreditava
ser capaz de andar.
Evidente que o caminho é longo e
a vida curta, o aprendizado estava longe de ser completo, ela ainda teria maus
bocados pela frente e uma descoberta interessante. Mas isso é assunto para
outra história. Porque o feliz para sempre não é a realidade para ninguém, o
aprendizado e o crescimento sim é que fazem parte das histórias.
Esses dias que você publicou eu li e esqueci de deixar meu comentário, hj recebi o seu e me lembrei de vir aqui te dizer o quanto eu adorei este texto! Ficou profundamente lindo! Acho incrível a maneira como você trabalha tão bem com essas questões do sofrimento humano sem ficar um texto enfadonho e muito melodramático, ficou mto bom mesmo jaque! Você é demais!
ResponderExcluirMto Obrigada, estou fora de forma, tentado buscar novas inspirações!
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