sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Amélia








Amélia era jovem, bonita, durona, tinha um filho lindo, acabara de adquirir casa própria, tinha um marido que bancava todas as despesas da casa, passava o fim de semana com ela. Tudo parecia transcorrer normalmente. Parecia. Havia algo em seu coração que a perturbava e ela nunca exteriorizava. Não gostava de parecer sentimental ou fraca.
Buscou logo cedo no amor, ou na paixão, ou sei lá como se chama aquele sentimento que aflora no coração dos adolescentes a referência paterna que não teve. Seu pai e sua mãe eram separados e ele não compartilhava a guarda como Amélia precisaria. Nessa busca encontrou um namorado, seu primeiro amor, ele não era a melhor das referências que ela poderia ter, mas contentou-se com isso por enquanto. Os anos passaram e ela foi descobrindo o mundo. Sempre se mantendo o mais correta possível, com muito medo de perder a referência masculina, aos poucos foi descobrindo que não sendo essa a melhor opção talvez fosse melhor viver outra história como de carreira de sucesso, por exemplo; ao invés do viveram felizes para sempre dos contos. Em meio a esses pensamentos engravidou. O rol de opções para sua vida feliz foi desmoronando um a um e ela foi obrigada a se contentar em casar e tentar conciliar sua busca pessoal.
Mas continuar vivendo quando as escolhas foram mal feitas não é fácil para ninguém e não foi para Amélia. Em casa, jovem, mãe, fumante, segundo grau incompleto, com bebê e o que tudo isso implica, com medo de virar um tribufu; sua fuga, seu único vínculo com aquilo que gostaria de ser foi a anorexia. Parece estranho, mas era a única coisa unicamente dela naquele momento. Claro as implicações foram significativas: parou de amamentar muito cedo, a final café e cigarro e não produzem o melhor leite do mundo. Se olhava no espelho e via uma imagem disforme de uma mulher gorda e feia, na verdade via sua própria alma amargurada no espelho e não importa quanta dieta, a alma não ficaria bela. Em função da falta de alimentação adequada, do excesso de café e cigarro, da presença de um bebê não planejado que obrigatoriamente ela teria que amar, sofreu um surto psicótico. Ficou um dia todo andando alienada, como zumbi pela casa, sem comer, sem olhar para seu bebê, sem escutar os choros dela, sem alma. Seu marido, que até então tinha assumido apenas o papel de provedor, colocava a grana em casa, foda-se o resto, levou um susto quando chegou e viu o vazio nos olhos da esposa. Pela primeira vez ele viu que havia algo errado e como muitos se perguntou como não tinha percebido chegar a esse ponto. Provavelmente não percebeu porque vivia entorpecido pela bebida que era mais fiel que a esposa no final da tarde. Pela primeira vez tomou uma atitude, não esperou a vida levá-lo. Pegou a bebê, levou para sua mãe, pediu para ela cuidar naquele dia, mentiu que sua dedicada esposa e mãe iria fazer uma consulta qualquer e demoraria toda a tarde. Procurou seu irmão e mentor, colocou minimamente a situação e pediu ajuda.
Amélia cujo corpo vagava e a alma já não estava mais presente nesse mundo foi levada para casa de seu cunhado, ela sequer percebeu a ausência do seu bebê, que obrigatoriamente deveria amar. Ele tentou conversar com ela, mas foi impossível, porque carne conversa. Decidiram levá-la para casa, afastá-la da bebê e esperar um momento de lucidez.
A lucidez surgiu numa madrugada escura e silenciosa. Amélia que já fumava de maneira automática e inconsciente saiu do seu devaneio com olhar de susto. Foi com pavor que viu seus dedos indicador e anelar queimados pelos cigarros que ela acendeu sem estar nesse planeta. Procurou um espelho e viu o reflexo de uma caveira, atônita foi mais adiante e observou seus dentes danificados pelo fumo e cafeína, então olhou para seu corpo e o que viu a apavorou. Era agora uma mulher alta, com todos os ossos aparecendo sob a roupa, a costa levemente curvada para frente em claro sinal de fraqueza, o cabelo maltratado pela falta de cuidado. Pela primeira vez desde que perdeu sua vida para o descuido conseguiu ver sua real imagem externa que expressava na essência o desespero. Nesse momento decidiu que uma infância roubada, uma decisão errada, uma busca frustrada e um filho não planejado não lhe roubaria um futuro de sucesso. Sentiu se miserável pelos meses que foi relapsa com seu filho. Nesse exato instante ela começou o planejamento de como seria sua mudança.
Primeiro passo foi parar de fumar e abandonar o café. Como todo bom viciado ela optou por um vício um pouco menos agressivo, o chimarrão. O cigarro foi terrível de deixar, mas ela superou. Andava com uma carteira com um cigarro na bolsa para forçar o auto controle, sabia que enquanto fosse capaz de não fumar aquele cigarro estaria sendo mais forte que sua dependência. Próximo passou foi assumir a maternidade. O primeiro olhar como mãe para seu filho foi algo tão emocionante que ela derramou lágrimas descontroladas, ela que nunca chorava era mãe e se emocionava com o amor que brotava em seu coração. Não era o amor obrigatório. Era um amor incondicional que só as mães e alguns pais conseguem sentir. A próxima atitude foi voltar a estudar e procurar um emprego. Não foi fácil, começou como zeladora da empresa do cunhado, o valor que recebia dava apenas para pagar as despesas da faculdade que era pública. Amélia era dotada de uma Inteligência inacreditável, embora não soubesse na época. Sabia apenas da força de vontade que tinha de vencer. Levava seu filho uns três quilômetros de bicicleta, grande parte deles morro acima, pelo menos na volta era morro abaixo, na creche pública que conseguiu vaga.
Sem reclamar ela foi apenas conquistando um futuro que lhe foi negado na infância. Com sucesso se formou em quatro anos, logo ingressou em uma pós graduação, seu filho foi crescendo de maneira saudável e absorvendo que o sucesso é conquistado, merecido, não ganhado. Tornou-se uma criança e estudiosa, algo que a deixava orgulhosa. Conseguiu um emprego estável em um concurso, ingressou em outra pós, dessa vez federal, conseguiu financiar a casa própria. Então respirou fundo, olhou para sua vida e concluiu que tinha andado muito mais do que ela própria acreditava ser capaz de andar.
Evidente que o caminho é longo e a vida curta, o aprendizado estava longe de ser completo, ela ainda teria maus bocados pela frente e uma descoberta interessante. Mas isso é assunto para outra história. Porque o feliz para sempre não é a realidade para ninguém, o aprendizado e o crescimento sim é que fazem parte das histórias.

2 comentários:

  1. Esses dias que você publicou eu li e esqueci de deixar meu comentário, hj recebi o seu e me lembrei de vir aqui te dizer o quanto eu adorei este texto! Ficou profundamente lindo! Acho incrível a maneira como você trabalha tão bem com essas questões do sofrimento humano sem ficar um texto enfadonho e muito melodramático, ficou mto bom mesmo jaque! Você é demais!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Mto Obrigada, estou fora de forma, tentado buscar novas inspirações!

      Excluir