A vida é dura para uma mulher sozinha que não se enquadra nos padrões sociais. Carla teve que aprender a viver com sua solidão e encontrou meios de fazê-lo de forma produtiva. Porque se recusou veementemente frequentar bares com gente ignorante que conversa sobre novela. Hoje, quando Carla vai ao bar, ou é sozinha para tomar caipira de vinho que ela adora ou é com uma amiga contadora que até hoje não puxou conversa falando de trabalho, novela ou alguém...
Esse anti social é bom e produtivo, é quando descobre seus talentos. E um dos talentos de Carla é cozinhar. Ela se perde em livros on line de receitas e busca mistura inéditas para experimentar sabores. Dessa vez Carla se entregou à delícia de cozinhar um pudim de queijo.
É tudo delicioso porque começa com uma caminhada ao mercado. Depois a escolha lenta dos ingredientes, sem pressa, com todo o prazer, como se o que fosse cozinhar seria degustado, na verdade seria, por ela mesma, mas Carla adora compartilhar, então em sua mente criou alguém importante para cozinhar. Esqueceu-se completamente de observar as pessoas, se inseriu no seu mundo de uma maneira tão absoluta que não perceberia nenhuma tragédia eminente. É devido à esses momentos de reclusão que Carla leva a fama de orgulhosa, poderia ter passado por sua melhor amiga e não a teria visto.
Em casa ela adora encenar como se tivesse em uma cozinha maravilhosa e toda equipada, resmunga porque esqueceu de comprar uma colher de pau nova e a que ganhou não é boa para cozinhar, deveria ser enfeite, algo inútil pra ela. Coloca a panela no fogo, abaixa porque tem que medir o leite, coloca o leite na panela, esquece de aumentar o fogo, dissolve o amido de milho, acrescenta e mexe vagarosamente, mede milimétricamente o açúcar, despeja observando a mudança na textura. Estranha a demora para iniciar a fervura, vai acrescentando o queijo lentamente, não porque a receita indica, mas porque Carla adora a magia da cozinha e perceber como a cada porção acrescentada altera levemente a textura e cor do leite, a fervura começa, Carla reclama internamente do fogão ruim e coloca na listra prioridade um fogão novo.
Ela continua mexendo, mente vazia, dispersa em observar como o calor age sobre os ingredientes. Acha o máximo quando o queijo começa a derreter e formar fio no leite já engrossado. Sorri um sorriso de prazer incompartilhável, é preciso ser meio louco para sentir prazer em alterações tão insignificantes. Continua mexendo, sentindo o cheiro, ouvindo o ploc ploc da fervura, é algo fascinante estimular todos os sentidos ao mesmo tempo, quase todos, na verdade o paladar é acrescentado depois. Chega ao ponto desejado, desliga, vê que o fogo estava baixo, entende porque o fogão estava TÃO ruim, despeja como se tivesse despejando uma preciosidade em uma forma de pudim caramelizada, cobre com papel alumínio e coloca na geladeira. Antes disso ainda dá uma última olhada na textura e já sente saudade da experiência.
Vai dormir, porque mais nada nesse dia poderia ser tão interessante quanto o prazer efêmero de cozinhar.
No outro dia levanta cedo, passa reto pelo banheiro e tira o papel alumínio para ver como ficou, tenta se conter e começar o dia decentemente, vai para sua higiene matinal ansiosa, ignora o protetor que passa todos os dias e volta para cozinha, vira o pudim num refratário e se delicia com a beleza dele, a cor do caramelo ficou perfeita. Experimenta lentamente e tem uma explosão de sensações inexplicáveis que ela tentou explicar. Trata-se de um sabor exótico para um paladar mais requintado, pensa que nesse mundo todo haveria apenas uma pessoa que ela conhece que gostaria de sentir o sabor, sente pela ausência e continua imersa nas sensações. Num primeiro momento é um doce comum que vem seguido de um leve azedo, com uma textura de coco ralado misturado com creme real. O doce e o azedo brigam pelo paladar, para chamar a atenção, parece que o pudim tem vida própria, aliás vidas próprias. A cada colherada uma experiência, lá pela terceira Carla pensa estar preparada para o que vai sentir quando colocar a colher na boca, mas incontrolavelmente sente a peculiaridade do sabor. Definitivamente não é algo que se come conversando, é algo que se degusta sozinho porque certamente a reação do paladar de cada um será inédita e será uma experiência intransferível. Carla não soube dizer se era gostoso ou ruim, ainda agora a única definição que consegue é que vale à pena experimentar pelas sensações que a mistura inusitada causa, mas não é algo que se tem vontade de comer toda a semana.
Certamente não é ruim, mas é algo tão inusitado que seria praticamente um pecado (para quem acredita em deus, claro) acostumar o paladar ao sabor e perder a sensação do novo, do desconhecido a cada colherada.