Após essa opção, criou mecanismos de aparentar bem. Mas estar simulando a sufocava e ia em desencontro à sua decisão: viver sua existência! Passar os dias e noites transfigurada num ser feliz, responsável, correto, religioso lhe doía, mas era o que era esperado dela e numa tentativa desesperada para agradar resolveu ser o que era esperado.
Novamente o improvável aconteceu. Quer dizer, o provável, porque na vida de Carla o improvável é provável, ou nem sei mais.
Fato: por mais que ela racionalmente pensasse que jamais amaria novamente, no seu íntimo ela sabia que amaria de novo. Mas jamais imaginaria que amaria ainda. Sim AINDA.
Foi nas férias, férias de tudo, num passeio, que ao olhar a sua página social encontrou milagrosamente um pedido de amizade. Quando leu de quem era, até atéia deixou de ser e disse: “Meu Deus”. Era do seu primeiro amor. Seu amor virtual. E começava novamente. Quer dizer, a julgar pelo borbulho no estômago, tremor das mãos e pela maneira como o coração disparou, não começou nada, apenas continuou. Reviveu em segundos, anos de emoções dormentes e descobriu que algumas coisas não mudam. Se sentiu, especial, única e lembrou das muitas vezes, mesmo durante o segundo amor, que procurou o primeiro na rede social.
Aceitou o pedido de amizade com ansiedade. Mandou um scrap dizendo que estava feliz em reencontrar ele. Mas não mandou nenhum outro contato, e se havia alguma coisa que Carla queria agora era outro contato. Mandou outro e ainda esqueceu do msn. Mandou um terceiro, todos claramente alterados pela emoção, não conseguia coordenar as palavras de maneira correta. Sentiu desde aquele momento que o amava ainda. Mas agora ela já era uma mulher durona, jamais admitiria isso, assim, tão facilmente. Principalmente sem saber da recíproca. Depois de um fim trágico, não se permitiria sofrer de novo. Mas já estava sofrendo com a dúvida dos anos ter colocado alguém especial na vida dele, ou mesmo não tendo alguém especial, não ser mais alguém especial o suficiente para ele. E para não sofrer, sofreu.
Conversaram via msn, trocaram emails, ela escrevia mais, descobriram que muitas coisas mudam, mas a essência permanece. Decidiram se encontrar pela primeira vez da segunda vez. Muitas coisas na vida de Carla aconteceram em dias ensolarados, mas a chegada dele foi num dia chuvoso, um pouco frio, mas um frio que não sabia explicar se era da temperatura, ou da emoção.
Carla idealizou novamente um encontro em câmera lenta, cinematográfico, sem chuva, teve que adaptar esse detalhe, com um beijo apaixonado e infinito. Mas na realidade o encontro foi tímido, com um abraço caloroso, confortável, aconchegante, mas o beijo teve que ser pedido (como muitos no futuro) e foi bem envergonhado com um jeito meio sem jeito (como muitos no futuro).
Com poucas palavras e muita emoção o amor se concretizou carnalmente, mas o gozo se contemplou na alma. A felicidade fez os olhos amargos de Carla transformar em riso leve e cheio de brilho.
A convivência nos dias que seguiram foi leve, gostosa, mas naturalmente as diferenças existiram, e não foram resolvidas facilmente, um tinha gênio difícil, outro cabeça dura.
O momento da partida era eminente, a vida real chama dos “felizes para sempre”, a angústia, a agonia e a incerteza tomaram conta do coração de Carla, que não imaginava ser digna de tão bela experiência. Carla teve dúvidas sobre a volta do amor e certezas do medo que teria caso dependesse dela a iniciativa. A partida aconteceu com lágrimas nos olhos, beijos carinhos e promessas de amor eterno.
Carla continuou cultivando o amor a distância que lhe fazia bem, lhe tirava da rotina medíocre e lhe dava um objetivo, um anseio de felicidade. Algo vivido remotamente. Os olhos dela tinham outro brilho, o riso se tornou fácil.
O segundo encontro passou rápido, coisa de um final de semana, mas bem vivido e bem aproveitado acompanhado de vinho do porto. Momentos memoráveis. E então o planejamento de uma vida em comum, algo bem tradicional. A acho que essa é a única coisa provável que realmente aconteceu na vida de Carla. Provável que o tradicional não daria certo. E não deu.
Ela tinha se acostumado a morar só, criou um sistema que não permitia a entrada de mais ninguém, isso somado ao fato dela estar muito carente e ver nele seu salvador culminou numa pressão muito grande, que ele não estava apto a suportar.
No fim os dois tinham aprendido a se amar a distância, com seus sonhos e ilusões que só a distância permite manter. Ele resolveu voltar ao seu antigo lar, à sua antiga vida.
Esse foi um momento dos mais desesperadores de Carla, foi quando ela desejou não mais viver, desejou deixar de ser ela, desejou ser borboleta, para ter uma vida fugaz e uma morte bela, sendo levada pela brisa. Mas se tratando de Carla, se fosse borboleta, não seria surpresa morrer logo ao sair do casulo, sem provar nenhuma flor, com uma chinelada de alguém que se sentiu amargurado com sua estonteante beleza.
Carla se sentiu amarga, desejou com muita raiva que a antiga vida do seu amor não lhe bastasse e que houvesse nela algo, uma única coisa que fosse de valor que o fizesse repensar no fim.
Procurou nas caixas empoeiradas do armário sua antiga máscara com um sorriso largo, olhos escondidos e continuou vivendo, como sempre fizera nesses casos. Paradoxalmente os próximos dias, os dias antes da partida foram mágicos e ela aceitou como um presente em compensação ao que o futuro reservava.
A partida foi com poucas lágrimas dela, nenhuma dele. Um pedido de aviso de como chegou e um planejamento de como Carla chegaria em casa e lidaria com o vácuo formado pela ausência. Encontrar algumas cuecas, um perfume e algumas camisetas fizeram o coração de Carla doer. Sentir um misto de raiva com desolação, tudo por baixo da máscara de feliz.
Ela decidiu que essa máscara não lhe servia mais, não tinha mais idade para viver escondida atrás de uma máscara, de um óculos, de um papel de boa menina.
Voltou a espiritualidade, não com religião, mas aceitando a presença dos espíritos que a cercavam, começou a aceitar seus sussurros como intuição, começou a buscar vida fora de si.
Viu dois ou três pôr do sol, eles fizeram ela se sentir um composto de algo maior, apreciou a beleza das nuvens, que estavam lá no céu expostas, para serem vistas ou ignoradas, tomou um chocolate quente com gosto de matura liberdade. Voltou em si, caminhou, percebeu que mesmo só poderia desfrutar de prazeres.
Continuou se sentindo alheia ao mundo, perdida na cidade e imaginou que a localização geográfica influenciava, o inverno chegou, sentiu frio, praguejou não estar em outro lugar.
O contato com o amor, com o passado se manteve, para ela era questão de honra tirar a máscara e ver no espelho um olhar sapeca, vivo e feliz. Continuou buscando. Com o contato mantido reviveu algumas mágoas, talvez reviva elas em toda sua vida. Mas reviveu a emoção de ouvir um eu te amo e mais que isso, reviveu a emoção de se sentir especial.
Sem maiores explicações à ninguém decidiu ir à cidade dele, sentir o clima, conhecer, viver, como se não houvesse que dar explicações à ninguém, na verdade não havia que dar explicações, as dava porque se sentia constantemente culpada, até por não ter culpa se sentia culpada. Talvez essa tenha sido a decisão mais ousada e isenta de opinião externa que Carla tenha tomado.
Viveu como se fosse seus últimos instantes, sem culpa por estar feliz, sem culpa por estar ali. Voltaram juntos, ficaram mais alguns dias e ele resolveu voltar ao seu mundo e deixar Carla no dela.
Foi estranho para Carla ele sugerir que ela fosse viver perto dele, não na mesma casa, não no mesmo bairro, mas na mesma cidade. No coração de Carla surgiu uma flor, como a vitória régia, que desabrocha na superfície mesmo surgindo de águas profundas. Uma flor que emanava um odor doce, apaixonante, que levou Carla a pensar que suas raízes não estavam plantadas no lugar certo.
Foi com um medo estranho que Carla saiu do serviço, deixou seus móveis, levou poucas roupas, afinal todas que tinha eram muito velhas e seguiu um caminho desconhecido. O sorriso não a abandonava, trilhar novos caminhos, sentir adrenalina sempre tinham feito bem à ela. Não avisou que estava indo, queria passar alguns dias completamente só na cidade, andar sem rumo, se perder e se achar, sem ninguém. Queria ser capaz de estar onde estava, de estar ali por si, não por um amor, não por que alguém lhe convidara, queria estar ali simplesmente porque queria, porque para ela essa transgressão tinha sabor de liberdade.
Ouviu muitos desaforos quando resolveu, que não podia sair do emprego que estava à dez maçantes anos, que não podia ir a um lugar mais violento, que, que, que.... Mas Carla sabia que podia, podia sair do emprego porque era capaz de arrumar outro, e com certeza a cidade não seria mais violenta do que onde morava, afinal já tinha sido roubada, sua casa já tinha levado um tiro e ela tinha sido ameaçada. Pior que isso não poderia ser.
Carla podia.
E foi.
Foi sem medo, foi por ela, foi por uma vida que sempre gostaria de ter tido. Depois de três dias sem rumo, comendo onde desse vontade de entrar, dormindo no primeiro hotel que encontrasse quando escurecia, com o celular desligado Carla resolveu bater à porta do seu amor. Esperava ser recebida com surpresa, um abraço caloroso e um beijo tímido. Estranho, mas a surpresa não foi grande, o abraço foi quase dolorido e o beijo intenso como querendo substituir todos os não dados no período distante.
Carla encontrou um apartamento pequeno, com lavanderia e uma cozinha confortável, comprou alguns móveis, arrumou suas roupas, saiu para buscar um emprego. É estranho como o universo conspira à favor daquilo que se quer, que se deseja. Passou algum tempo Carla começou a trabalhar e em pouco tempo Carla começou a buscar aventuras. Não amorosas, foi pular de para quedas, bumgee jump, visitar museus, parques, se sentiu estranha vivendo o sonho que tivera desde a infância.
O amor de Carla era estranho, não ficavam muito juntos porque Carla era teimosa e ele cabeça dura, deixavam uma certa distância para alimentar cada um do seu jeito o que sentiam, mas se encontravam com a frequência necessária para que a saudade não os sufocassem.
Era um amor estranho, mas agora não havia dúvida, era amor! De um jeito estranho, singular, muito próprio, autêntico, nada tradicional, mas era amor na sua totalidade. Nunca era compreendido pelos que se adaptavam ao trivial, ao esperado pela sociedade, mas Carla e seu amor não existiam mais para se adaptar, existiam somente para serem felizes, cada um da sua forma e os dois juntos de um jeito incomum. Não seria o tradicional felizes para sempre, mas seria o felizes enquanto mantivessem uma distância saudável.
Então, Carla tem um amor, estranho amor e não é o filme proibido da Xuxa.
Mas quase foi uma história proibida!